O MEU AMIGO JOAQUIM
Decisões não são para se tomar com o coração, mas com a cabeça. É lá que se fabricam os sonhos.
O verão terminou, pelo menos para mim. Não oficialmente, nada de datas no calendário. Foi uma decisão interior, assumida, responsável.
Hoje, levantei-me bem disposto, lavei-me, tomei o pequeno almoço, e saí. Quando assomei à porta da rua, o dia estava cinzento, triste, mais frio que no dia anterior. E chovia, uma chuva miudinha, de mentira, daquelas que aqui, ficam por longo tempo.
Não fiz de propósito, mas naqueles segundos em que tinha de tomar a decisão de voltar a casa, para vestir roupa mais quente, e apanhar o guarda chuva, a minha mente encheu-se de imagens antigas de luz e cor e de chuva bravia, e senti a saudade imensa de um calor antigo, bem conhecido, na minha pele.
Nesse momento nasceu a ideia de escrever esta história. É de ficção, juro, mas garanto que é mais real do que muitas coisas que aconteceram já.
Aos quinze anos o Joaquim era um rapaz igual com os outros. Ou pelo menos assim pensava eu.
Nada o distinguia, nenhum traço peculiar, exterior ou na alma.
Como todos nós, ouvia os Beach Boys, tinha a camisa de Macau bem arregaçada nas mangas e o colarinho levantado, ia derramar todo o seu charme à saída da missa e esperava ansioso a chegada das férias, pensando nas mais loucas aventuras. Principalmente, tinha rebaixado o guiador da mota, e espetava os sapatos em direcção ao chão. Eram os anos sessenta, e nós eramos seus habitantes de pleno direito.
Nada, mas mesmo nada fazia prever que o Joaquim se iria diferenciar de todos nós.
Mas um dia, após um jogo de futebol, daqueles que já não existem, e já depois de termos discutido ao pormenor todas as reviengas e ocasionais bassulas, naquela altura em que o sol está apenas morno, diz-me com o ar mais displicente do mundo:
- Esta vida não me serve! Deve haver, há de certeza coisa melhor do que isto. Há janelas no céu, que desconhecemos por completo, que nem sequer sabemos onde estão e como se abrem. Preciso de encontrar as chaves e correr esse mundo de que só oiço falar. Se não saio daqui, vou-me cafrializar, como tantos que conhecemos!
Confesso, que me apanhou desprevenido. Fiquei sem fala a olhar para ele. Fiz um gesto vago, para preencher o vazio que se tinha feito em nosso redor, despedi-me e rumei para casa; além do mais, não sabia bem o que queria dizer “cafrializar” nem conhecia ninguém que se tivesse tornado assim, soube-o depois, uma espécie de zombie da cultura. Nessa noite dormi mal, aquelas palavras teimavam em ecosoar dentro da minha cabeça.
Acordei acabrunhado, e a pensar que eventualmente o Joaquim tinha razão. Jogar futebol, ir às saídas da missa tentar um engate, ir noite após noite ver passar o combóio mala, fumar umas biatas às escondidas, parecia-me agora pouco, apesar de achar que a nossa vida não era só isso. Vivíamos numa terra maravilhosa, tranquilamente, sem stress, livres de drogas, podia telefonar para o rádio –clube e pedir que pusessem o “Ma Vie”, com destinatário. Além do mais lia muito, da enorme biblioteca que os meus pais tinham, muitas vezes até livros que eles não me recomendariam. Mas antes de tudo, decidi saber o que era ao certo cafrializar.
Dicionarizei-me e lá rezava assim: “tornar-se num cafre”.
Tenho dúvidas ainda hoje que isso fosse mau, mas apesar de tudo... Cafrializar-me? Nunca tal me passou pela cabeça. É verdade que nunca tinha visto a Pietá do Miguel Angelo, nem a grande muralha da China, mas sempre achei que sabíamos o que se passava no mundo, e que o acesso à “cultura ocidental” era relativamente fácil.
Mas muito para além da minha vontade, a dúvida instalou-se, amargurou-me durante algum tempo; havia de facto um mundo lá fora à nossa espera e se calhar nós estávamos a passar ao lado.
Depois, a adolescência sobrepôs-se, o tempo apaziguou o resto e tudo passou para um local adormecido do meu cérebro. O Joaquim talvez por pudor, e por ter visto a minha estupefacção, não me voltou a tocar no assunto.
Chegado o tempo certo, cada um rumou à sua vida, e passaram quase trinta anos antes que o visse de novo.
Espantoso! Não o reconheci. O adolescente meu amigo estava velho, cheio de rugas, alguns cabelos brancos, uma discreta calvície a instalar-se e tendencialmente obeso. Mas aquilo, que verdadeiramente me perturbou, foi verificar que o meu velho amigo Joaquim não tinha um ar completamente feliz.
No meio da amena cavaqueira, recordando episódios da outra margem do fosso do tempo, fez-me uma pergunta e sem o saber voltou a acordar em mim um fantasma de trinta anos, como se de facto o tempo tivesse congelado até ao presente:
- Henrique, provavelmente não te vais recordar, mas há uma eternidade atrás, tivemos uma conversa. Desde aí, tirei o meu curso, casei, tenho dois filhos, não tenho problemas de dinheiro, viajo frequentemente, conheço meio mundo, estou actualizado em todas as áreas que me dão prazer, mas a verdade é que ainda não consegui estar completamente bem comigo mesmo. Consegues ao menos tu, agora, explicar-me o que se passa?
Pela segunda vez, fiquei paralisado de espanto. Fiz o mesmo gesto vago de há trinta anos, balbuciei meia dúzia de frases feitas e mudei de conversa. E naquele recanto escondido do meu cérebro, reapareceu aquela cena que tanto me havia perturbado.
Agora, algum tempo depois, mais tranquilo, sem o ter à minha frente, e com a certeza das coisas que só os anos nos podem dar, posso explicar ao Joaquim o que lhe (nos) aconteceu, na certeza de que ele me vai compreender.
Ele que me perdoe, mas há respostas que não podem ser dadas directamente. O afecto entre ambos impede que assim seja.
Em 1978, abandonei toda a minha vida aqui e sem nenhuma garantia regressei a Angola, ao Lobito. Era na altura o único médico português da Província de Benguela e tinha à minha responsabilidade o Hospital do C.F.B. e toda a imensa população que me procurava. Ao fim de dois anos tinham passado por nós 45.000 pessoas e eu tinha emagrecido oito quilos.
Deparei-me com toda a série de dificuldades.
Morriam-me miúdos todos os dias, apesar de pensar que fiz a diferença, pois salvei muitos. Obriguei o meu pai, a fazer preparados heróicos do tempo dele, pois os medicamentos convencionais há muito tinham desaparecido. Mediquei os meus pacientes com coisas que nunca quis saber o que eram.
Dei consultas debaixo de palmeiras, com bichas imensas de doentes que me aguardavam, em diversas localidades ao longo da linha, onde me deslocava periodicamente, na esperança de poder de alguma maneira ser útil, e minorar o sofrimento daquele povo.
Fui ao Cubal, ao nosso Cubal, e só vi miséria e casas destruídas e gente a explodir de fome. De tal modo foi doloroso, que só a muito custo, consegui reconhecer a minha terra. Onde antes havia sisal, apenas uma imensa planície vermelha sem mais nada a não ser o pó, levantado por aqueles que aparentemente vagueavam sem destino..
Vi coisas que um ser humano, jamais deveria ver.
Raptei miúdos dos centros de acolhimento, às dezenas (ninguém se preocupava com eles), durante a noite, e levei-os para o Hospital para que não morressem de fome. Depois quando aqueles já tinham condições de sobreviver, ia buscar outros. Nunca ninguém chegou a aperceber-se desta situação, tal era o desinteresse que demonstravam por aqueles miúdos. Nunca perceberam que estavam a hipotecar o futuro.
Enfrentei as autoridades, com algum risco pessoal para lhes sacar algumas toneladas de leite que de outro modo iam engordar a burguesia dominante.
Chorei muitas vezes, quando morriam miúdos no meu colo, de doenças de que já ninguém morre, e morreram mais do que aqueles que eu alguma vez conseguirei aguentar. Bati a morte muitas vezes, apesar de reconhecer que ela me venceu em muitas mais batalhas.
Fui politicamente posto de lado pela única razão de ser branco.
Ficaram a dever-me, praticamente todos os ordenados a que tinha direito.
E, ao fim de dois anos, perto do esgotamento, e também porque achei que não tinha o direito de sacrificar os meus filhos, cedi e vim-me embora.
Aqui, reconstruí a minha carreira e a minha vida. Perdoem-me a imodéstia, mas dizem que sou bom naquilo que faço.
Meu querido Joaquim, chegou agora a altura de te dizer, o que é que eu acho mais importante.
Quando faço o balanço da minha vida, afirmo sem hesitar, que apesar de todas as dificuldades, apesar da grande amargura e de todos os sonhos terríveis que continuo a ter, aqueles foram os dois anos mais felizes que tive. Nunca mais voltei a sentir aquilo que na altura senti.
Apesar de tudo, estava na minha terra (embora sempre tenham tentado fazer-me crer que não era assim), sentia diariamente a carícia na pele, do calor do fim do dia, não precisava de imaginar os sons e os aromas, eles estavam entranhados naturalmente, e também naturalmente continuei a ir ver o combóio mala, o tal que faz parte do imaginário de todos nós, pelas mais diversas razões, que todos têm explicado.
Por mim, já o disse, transportava mercadorias, passageiros, cavalgava por terras míticas da minha pátria, lugares que posteriormente conheci, e que nem por isso deixaram de ser fantásticos, mas fundamentalmente transportava os nossos sonhos.
E os meus, confesso agora, nunca passaram por vir viver para um continente que me limita, onde não me compreendem e me acham um animal esquisito, só porque gosto de cores fortes, puras, de música pouco convencional para um médico, e onde não apreciam de todo a alegria com que falo da minha terra.
Meu querido amigo, apesar de já ter visto a Pietá, de ter estado longo tempo frente a frente com a Gioconda, apesar de já ter tocado com as minhas mãos na Vénus de Milo e de ter visto o esqueleto da Lucy on Sky, ou mais prosaicamente, como diz um amigo comum, de ter estado no cimo do Empire State Building, com Nova Iorque a meus pés, apesar de ter sido envolvido pela solidão única do Sara, hoje voltaria sem hesitar, largaria tudo o que tenho, pelo único motivo de querer ser completamente feliz.
Não passa um único dia, em que não sonhe com o que poderia ter sido a minha vida, e em que a saudade não me assole a alma. É que além do mais, dentro de mim, no meu peito, do lado esquerdo, pulsa sem qualquer margem para dúvidas, um coração angolano.
Cafrializar-me eu?
Nunca.
Henrique Faria
Outubro de 2000. (a ouvir música africana).
Decisões não são para se tomar com o coração, mas com a cabeça. É lá que se fabricam os sonhos.
O verão terminou, pelo menos para mim. Não oficialmente, nada de datas no calendário. Foi uma decisão interior, assumida, responsável.
Hoje, levantei-me bem disposto, lavei-me, tomei o pequeno almoço, e saí. Quando assomei à porta da rua, o dia estava cinzento, triste, mais frio que no dia anterior. E chovia, uma chuva miudinha, de mentira, daquelas que aqui, ficam por longo tempo.
Não fiz de propósito, mas naqueles segundos em que tinha de tomar a decisão de voltar a casa, para vestir roupa mais quente, e apanhar o guarda chuva, a minha mente encheu-se de imagens antigas de luz e cor e de chuva bravia, e senti a saudade imensa de um calor antigo, bem conhecido, na minha pele.
Nesse momento nasceu a ideia de escrever esta história. É de ficção, juro, mas garanto que é mais real do que muitas coisas que aconteceram já.
Aos quinze anos o Joaquim era um rapaz igual com os outros. Ou pelo menos assim pensava eu.
Nada o distinguia, nenhum traço peculiar, exterior ou na alma.
Como todos nós, ouvia os Beach Boys, tinha a camisa de Macau bem arregaçada nas mangas e o colarinho levantado, ia derramar todo o seu charme à saída da missa e esperava ansioso a chegada das férias, pensando nas mais loucas aventuras. Principalmente, tinha rebaixado o guiador da mota, e espetava os sapatos em direcção ao chão. Eram os anos sessenta, e nós eramos seus habitantes de pleno direito.
Nada, mas mesmo nada fazia prever que o Joaquim se iria diferenciar de todos nós.
Mas um dia, após um jogo de futebol, daqueles que já não existem, e já depois de termos discutido ao pormenor todas as reviengas e ocasionais bassulas, naquela altura em que o sol está apenas morno, diz-me com o ar mais displicente do mundo:
- Esta vida não me serve! Deve haver, há de certeza coisa melhor do que isto. Há janelas no céu, que desconhecemos por completo, que nem sequer sabemos onde estão e como se abrem. Preciso de encontrar as chaves e correr esse mundo de que só oiço falar. Se não saio daqui, vou-me cafrializar, como tantos que conhecemos!
Confesso, que me apanhou desprevenido. Fiquei sem fala a olhar para ele. Fiz um gesto vago, para preencher o vazio que se tinha feito em nosso redor, despedi-me e rumei para casa; além do mais, não sabia bem o que queria dizer “cafrializar” nem conhecia ninguém que se tivesse tornado assim, soube-o depois, uma espécie de zombie da cultura. Nessa noite dormi mal, aquelas palavras teimavam em ecosoar dentro da minha cabeça.
Acordei acabrunhado, e a pensar que eventualmente o Joaquim tinha razão. Jogar futebol, ir às saídas da missa tentar um engate, ir noite após noite ver passar o combóio mala, fumar umas biatas às escondidas, parecia-me agora pouco, apesar de achar que a nossa vida não era só isso. Vivíamos numa terra maravilhosa, tranquilamente, sem stress, livres de drogas, podia telefonar para o rádio –clube e pedir que pusessem o “Ma Vie”, com destinatário. Além do mais lia muito, da enorme biblioteca que os meus pais tinham, muitas vezes até livros que eles não me recomendariam. Mas antes de tudo, decidi saber o que era ao certo cafrializar.
Dicionarizei-me e lá rezava assim: “tornar-se num cafre”.
Tenho dúvidas ainda hoje que isso fosse mau, mas apesar de tudo... Cafrializar-me? Nunca tal me passou pela cabeça. É verdade que nunca tinha visto a Pietá do Miguel Angelo, nem a grande muralha da China, mas sempre achei que sabíamos o que se passava no mundo, e que o acesso à “cultura ocidental” era relativamente fácil.
Mas muito para além da minha vontade, a dúvida instalou-se, amargurou-me durante algum tempo; havia de facto um mundo lá fora à nossa espera e se calhar nós estávamos a passar ao lado.
Depois, a adolescência sobrepôs-se, o tempo apaziguou o resto e tudo passou para um local adormecido do meu cérebro. O Joaquim talvez por pudor, e por ter visto a minha estupefacção, não me voltou a tocar no assunto.
Chegado o tempo certo, cada um rumou à sua vida, e passaram quase trinta anos antes que o visse de novo.
Espantoso! Não o reconheci. O adolescente meu amigo estava velho, cheio de rugas, alguns cabelos brancos, uma discreta calvície a instalar-se e tendencialmente obeso. Mas aquilo, que verdadeiramente me perturbou, foi verificar que o meu velho amigo Joaquim não tinha um ar completamente feliz.
No meio da amena cavaqueira, recordando episódios da outra margem do fosso do tempo, fez-me uma pergunta e sem o saber voltou a acordar em mim um fantasma de trinta anos, como se de facto o tempo tivesse congelado até ao presente:
- Henrique, provavelmente não te vais recordar, mas há uma eternidade atrás, tivemos uma conversa. Desde aí, tirei o meu curso, casei, tenho dois filhos, não tenho problemas de dinheiro, viajo frequentemente, conheço meio mundo, estou actualizado em todas as áreas que me dão prazer, mas a verdade é que ainda não consegui estar completamente bem comigo mesmo. Consegues ao menos tu, agora, explicar-me o que se passa?
Pela segunda vez, fiquei paralisado de espanto. Fiz o mesmo gesto vago de há trinta anos, balbuciei meia dúzia de frases feitas e mudei de conversa. E naquele recanto escondido do meu cérebro, reapareceu aquela cena que tanto me havia perturbado.
Agora, algum tempo depois, mais tranquilo, sem o ter à minha frente, e com a certeza das coisas que só os anos nos podem dar, posso explicar ao Joaquim o que lhe (nos) aconteceu, na certeza de que ele me vai compreender.
Ele que me perdoe, mas há respostas que não podem ser dadas directamente. O afecto entre ambos impede que assim seja.
Em 1978, abandonei toda a minha vida aqui e sem nenhuma garantia regressei a Angola, ao Lobito. Era na altura o único médico português da Província de Benguela e tinha à minha responsabilidade o Hospital do C.F.B. e toda a imensa população que me procurava. Ao fim de dois anos tinham passado por nós 45.000 pessoas e eu tinha emagrecido oito quilos.
Deparei-me com toda a série de dificuldades.
Morriam-me miúdos todos os dias, apesar de pensar que fiz a diferença, pois salvei muitos. Obriguei o meu pai, a fazer preparados heróicos do tempo dele, pois os medicamentos convencionais há muito tinham desaparecido. Mediquei os meus pacientes com coisas que nunca quis saber o que eram.
Dei consultas debaixo de palmeiras, com bichas imensas de doentes que me aguardavam, em diversas localidades ao longo da linha, onde me deslocava periodicamente, na esperança de poder de alguma maneira ser útil, e minorar o sofrimento daquele povo.
Fui ao Cubal, ao nosso Cubal, e só vi miséria e casas destruídas e gente a explodir de fome. De tal modo foi doloroso, que só a muito custo, consegui reconhecer a minha terra. Onde antes havia sisal, apenas uma imensa planície vermelha sem mais nada a não ser o pó, levantado por aqueles que aparentemente vagueavam sem destino..
Vi coisas que um ser humano, jamais deveria ver.
Raptei miúdos dos centros de acolhimento, às dezenas (ninguém se preocupava com eles), durante a noite, e levei-os para o Hospital para que não morressem de fome. Depois quando aqueles já tinham condições de sobreviver, ia buscar outros. Nunca ninguém chegou a aperceber-se desta situação, tal era o desinteresse que demonstravam por aqueles miúdos. Nunca perceberam que estavam a hipotecar o futuro.
Enfrentei as autoridades, com algum risco pessoal para lhes sacar algumas toneladas de leite que de outro modo iam engordar a burguesia dominante.
Chorei muitas vezes, quando morriam miúdos no meu colo, de doenças de que já ninguém morre, e morreram mais do que aqueles que eu alguma vez conseguirei aguentar. Bati a morte muitas vezes, apesar de reconhecer que ela me venceu em muitas mais batalhas.
Fui politicamente posto de lado pela única razão de ser branco.
Ficaram a dever-me, praticamente todos os ordenados a que tinha direito.
E, ao fim de dois anos, perto do esgotamento, e também porque achei que não tinha o direito de sacrificar os meus filhos, cedi e vim-me embora.
Aqui, reconstruí a minha carreira e a minha vida. Perdoem-me a imodéstia, mas dizem que sou bom naquilo que faço.
Meu querido Joaquim, chegou agora a altura de te dizer, o que é que eu acho mais importante.
Quando faço o balanço da minha vida, afirmo sem hesitar, que apesar de todas as dificuldades, apesar da grande amargura e de todos os sonhos terríveis que continuo a ter, aqueles foram os dois anos mais felizes que tive. Nunca mais voltei a sentir aquilo que na altura senti.
Apesar de tudo, estava na minha terra (embora sempre tenham tentado fazer-me crer que não era assim), sentia diariamente a carícia na pele, do calor do fim do dia, não precisava de imaginar os sons e os aromas, eles estavam entranhados naturalmente, e também naturalmente continuei a ir ver o combóio mala, o tal que faz parte do imaginário de todos nós, pelas mais diversas razões, que todos têm explicado.
Por mim, já o disse, transportava mercadorias, passageiros, cavalgava por terras míticas da minha pátria, lugares que posteriormente conheci, e que nem por isso deixaram de ser fantásticos, mas fundamentalmente transportava os nossos sonhos.
E os meus, confesso agora, nunca passaram por vir viver para um continente que me limita, onde não me compreendem e me acham um animal esquisito, só porque gosto de cores fortes, puras, de música pouco convencional para um médico, e onde não apreciam de todo a alegria com que falo da minha terra.
Meu querido amigo, apesar de já ter visto a Pietá, de ter estado longo tempo frente a frente com a Gioconda, apesar de já ter tocado com as minhas mãos na Vénus de Milo e de ter visto o esqueleto da Lucy on Sky, ou mais prosaicamente, como diz um amigo comum, de ter estado no cimo do Empire State Building, com Nova Iorque a meus pés, apesar de ter sido envolvido pela solidão única do Sara, hoje voltaria sem hesitar, largaria tudo o que tenho, pelo único motivo de querer ser completamente feliz.
Não passa um único dia, em que não sonhe com o que poderia ter sido a minha vida, e em que a saudade não me assole a alma. É que além do mais, dentro de mim, no meu peito, do lado esquerdo, pulsa sem qualquer margem para dúvidas, um coração angolano.
Cafrializar-me eu?
Nunca.
Henrique Faria
Outubro de 2000. (a ouvir música africana).