CNN , Opinião de Arwa Damon
Vejo imagens paralelas nas inundações de
humanidade que chegam até mim. Uma acontece mesmo à frente dos meus olhos, na
fronteira Ucrânia-Polônia. Mãos grandes que agarram as pequeninas, pequenas
cabeças apoiadas em ombros cansados, o zumbido constante das rodas das malas.
Vejo rostos paralisados pelo choque, marcados pelas rugas do trauma que nunca
irão desaparecer completamente. Os olhos vidrados em pura descrença, as mentes
incapazes de compreender as vidas que deixaram para trás.
A outra imagem sobrepôs-se na minha
mente, criada pela enchente de memórias de quando fiz a cobertura da crise dos
refugiados de 2015. Naquela época, multidões espremiam-se contra o arame
farpado na fronteira Grécia-Macedónia. Uma mãe embalava o seu bebé debaixo de
uma lona de plástico, à chuva. Um pai levantou no ar a sua filha febril e
apática e disse: “Olhe para ela, olhe para o estado dela. Na Síria, ela era uma
princesa.”
Atualmente, parece que o mundo acordou e
finalmente percebeu quão implacável e assassino é o governo russo. Como se há
anos os sírios não morressem com as mesmas bombas russas. Como se as inúmeras
vozes sírias não implorassem ajuda ao mundo. Na altura, perguntaram-me: “Porque
é que o mundo não se importa connosco?” Mas eu não poderia responder sem
destroçá-los ainda mais. Como dizemos a alguém que a sua vida não faz parte de
um cálculo geopolítico? Que no grande esquema dos mestres de marionetas, a vida
deles não vale assim tanto?
Penosamente, estamos a ver que os
refugiados são acolhidos seletivamente e os criminosos de guerra são punidos
seletivamente. Não são apenas os média ocidentais que são tendenciosos; é todo
o mundo ocidental. Ouço isso na retórica vinda de políticos, jornalistas e
líderes globais. Retórica sobre como os ucranianos são um “povo próspero de
classe média”, “a família da porta ao lado”, “civilizados”. Como se o que
define um ser humano digno de ser salvo fosse identificado pela cor da sua
pele, a língua que fala, a religião que pratica ou onde nasceu.
A verdade feia é que a nossa humanidade
é superficial. E isso parte-me o coração.
Hoje, na Polónia, vejo a beleza do que
pode acontecer quando os refugiados são acolhidos. Quando a bondade e a
compaixão recebem aqueles que fogem das suas vidas. Quando centenas de
voluntários esperam por autocarros atrás de autocarros com placas a oferecer
viagens gratuitas e lugares quentes onde ficarem. Quando as forças de segurança
do país anfitrião facilitam o movimento, providenciam informações e abrigo.
Quando um estranho diz: “Está tudo bem, já está em segurança, o que posso fazer
por si?”
Mais uma vez, volto ao que acontece
quando os refugiados não são bem-vindos. Em 2015, nenhum dos restaurantes ou
cafés à volta da estação de comboios de Budapeste, na Hungria, permitia a
entrada de refugiados. Aqueles que fugiam foram reunidos como gado pelas forças
de segurança até conseguirem romper as barreiras e fugir. Quilómetros e
quilómetros de pessoas a andar a pé, à espera e a rezar para que alguém lhes
mostrasse misericórdia. Na altura, havia muita retórica contra os refugiados
por parte dos governos e das populações da Europa, envolta em receios de que o
Daesh se infiltrasse, que aqueles na estrada eram “demasiado diferentes”. E
sim, isso também foi durante o auge dos ataques do Daesh na Europa. Mas também
foi durante o auge dos ataques do Daesh e de outros grupos terroristas na
Síria, no Iraque, no Afeganistão e noutros locais.
No centro disto está a triste realidade
de os refugiados sobre quem falei no passado serem do Médio Oriente, do Norte
de África e do Afeganistão, e serem considerados “os outros” por muitos no
mundo ocidental. E, por alguma razão, isso fazia com que ninguém se
identificasse com a dor e o sofrimento deles. Eu disse ao mundo, na CNN, que os
sírios são como qualquer outra pessoa; eles tinham sonhos, casas, uma sensação
de segurança em que acreditavam. Eu senti que não estava a ter ressonância, que
não estava a ser ouvida. Para a grande maioria de nosso público ocidental, eles
continuaram a ser “os outros”.
Enquanto jornalista, pergunto-me muitas
vezes se, de alguma forma, eu falhei naquela época. Como poderia ter contado as
histórias de refugiados de forma a que o mundo se importasse? Carrego essa
culpa comigo há anos, ainda hoje. Porque certamente haveria uma maneira de
mostrar ao mundo ocidental - o mesmo mundo que agora está ao lado dos
ucranianos - que os sírios, os iraquianos, os afegãos e outros povos que
seguiram este mesmo caminho pela Europa, são exatamente como eles. Sou de
ascendência árabe e americana, mas a minha aparência - pele clara, olhos
verdes, cabelos louros - está tão fora do estereótipo árabe, que ninguém
questiona o meu lugar. Vejo rostos sírios e iraquianos nos ucranianos. E sou
levada de volta à Grécia, em 2015, quando uma senhora síria, idosa e elegante,
a fugir para um lugar seguro, na lama, me agarrou no braço, o seu toque tão
suave quanto o da minha avó.
Lembro-me que, nesse mesmo ano, uma
mulher na Hungria nos pediu para não a filmarmos. Não porque estivesse
preocupada com a segurança da família, ainda na Síria, mas porque não queria
que a vissem humilhada, suja e sentada no chão.
Esta semana, olhei para as mulheres e
crianças ucranianas que entravam nos autocarros que as esperavam, e senti-me
tão aliviada por a história de refugiados delas ser tão diferente. Nem tudo foi
mau. Testemunhei alguns momentos emocionantes em 2015. Pessoas na estrada que
liga a Hungria à Áustria, paradas com carrinhos, comida e água para os
refugiados. A pedirem desculpa pelo comportamento dos seus governos, dizendo:
“Não somos todos assim.” E em pontos de encontro improvisados, os esforços
locais acabaram por se juntar aos de instituições de beneficência maiores, para
fornecerem abrigos básicos. Mas nada disso se compara ao que estou a ver aqui
na Ucrânia e na Polónia.
Em todos os centros de realojamento de
refugiados e passagens fronteiriças, há montanhas de roupas, bonecos de
peluche, carrinhos de bebé e muito mais. Um sistema completo e um exército de
voluntários, a trabalharem em conjunto para ajudar os ucranianos em fuga.
Lembro-me de quando a então chanceler
alemã Angela Merkel disse que o seu país receberia um milhão de sírios. Os
refugiados com quem eu estava na Hungria começaram a chorar de alegria;
finalmente sentiam-se bem-vindos e não tratados como lixo indesejado. Mas, com
o passar dos meses, a grande solução da Europa foi chegar a um acordo com a
Turquia para fechar a rota dos migrantes, deixando num limbo os que já estavam
no caminho.
Sete anos depois, muitos deles ainda
estão nos mesmos campos e centros improvisados, as suas vidas estagnadas.
Algumas crianças nascidas nos campos nunca conheceram um verdadeiro lar. É
provável que muitos não saibam que os sírios ainda estão nestes campos
improvisados.
Eu comparo essas memórias com o que está
a acontecer no mundo inteiro, atualmente, com tantas nações a declarar que
todos os refugiados ucranianos são bem-vindos. Vejo países ocidentais a
oferecer vistos de residência de um ano a esses refugiados, autorizações de
trabalho e trânsito livre para outros países.
Vejo como as potências ocidentais e
outras expressam indignação face ao que se passa na Ucrânia, os mesmos países
que, na melhor das hipóteses, falaram da boca para fora quando se tratou da
Síria, e os outros que simplesmente ficaram calados. Vejo país após país,
ocidentais e outros, unidos para pressionar a Rússia, a aplicar sanções mais
duras do que nunca. Vejo empresas de cartões de crédito a negar o seu uso na
Rússia, companhias aéreas a interromper serviços e os produtos a serem
boicotados. Não importa de onde sejam, as emoções dos refugiados são muito
parecidas: a incapacidade de compreender como a sua realidade se alterou de
forma tão repentina e violenta, e a culpa dos sobreviventes que assola aqueles
que fugiram, mesmo que para salvar os seus filhos, mesmo que, racionalmente,
fosse a única opção.
Cada guerra é diferente, os seus
contornos traçados por poderes maiores que o indivíduo e pela ganância e
crueldade da geopolítica. Mas o sofrimento das pessoas apanhadas no braço de
ferro continua a ser a mesma. A agonia de perceber que não só o seu país já não
é seguro, como pode até deixar de existir. Aldeias e cidades onde os pezinhos
corriam e brincavam à apanhada, estão agora reduzidas a escombros. As cozinhas
e salas onde as famílias se reuniam para as refeições e os casais discutiam,
foram transformadas em cinzas. As cabeças entre as mãos, os ombros a tremer, as
almas a gritar.
Esse sofrimento é universal. Como deve
ser a reação a ele.
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