terça-feira, agosto 14, 2007

HISTÓRIAS DA MINHA VIDA

Foi há alguns anos, quatro ou cinco se a memória não me falha.
Através de amigos comuns, via Internet, apareceu-me no consultório vindo dos confins de Angola, com uma história espantosa para contar.
Ao primeiro contacto, ficamos amigos. Nem podia ser de outra maneira, já que eu também sou angolano, daqueles que vivem permanentemente com a alma esticada pela distância.
Vivia e vive nos confins do Cunene, rodeado de gado e espaço sem fim. Toma o matabicho na varanda e vê os elefantes a beber água no rio. Não quer viver noutro lado e eu sei do que ele está a falar.
Um dia, sem qualquer aviso prévio, teve uma dor intensa no peito que se manteve agonizante durante horas. Sem recursos próximos, meteu-se no “jeep” e desandou para Sá da Bandeira. Seis horas de caminho, por aqueles trilhos de Deus e com a dor a torturá-lo. Imagino vagamente o sofrimento por que terá passado. Todos os dias vejo doentes nesse estado e a dor é realmente muito difícil de suportar.
Finalmente chegou ao Hospital de Sá da Bandeira, foi visto pelo médico, medicado com aspirina e evacuado para Luanda. Quero crer que a aspirina lhe foi dada com conhecimento de causa, mas o mais provável é que não houvesse mais nada para lhe dar. Seja como for, o médico deu-lhe sabendo ou não, o único medicamento que naquelas circunstâncias, provavelmente lhe salvou a vida.
Ouvi estarrecido, esta história. Fiz o diagnóstico rapidamente, quase só pela conversa. Após os exames, confirmei-o. Tratava-se obviamente de um enfarte do miocárdio e, todos nós sabemos que um grande número de doentes morre na primeira hora após o início da dor. Internei-o e estudei-o, após o que decidi submetê-lo a angioplastia coronária, técnica de dilatação das artérias coronárias, feita através de uma artéria da perna.
E aqui começou uma das intervenções mais épicas que fiz na minha vida.O meu amigo é um homem valente, não poderia ser de outro modo para alguém que vive o tipo de vida que ele vive, mas em se tratando de agulhas e intervenções e médicos o caso muda de figura.Em determinado momento da intervenção, com ele já em choque resolvi acabar com a brincadeira. Solicitei a anestesia geral e pude finalmente fazer o resto da angioplastia em paz, estabilizando-o devidamente.
Alguns dias depois, com a minha pele de médico vestida, tive uma conversa séria com ele. Disse-lhe que teria que mudar de vida, submeter-se a consultas de controle, viver pacatamente e sobretudo não fazer grandes esforços.
No mesmo momento a cara dele disse-me tudo aquilo que eu na altura não queria ouvir.
Regressou ao Cunene e, por lá tem estado. A última vez que falei com ele, disse-me que se as chuvas o permitissem viria cá para me satisfazer. Claro que não veio.
Não estou dividido. A minha alma de angolano compreende o que se passou. Fico muito feliz por saber que pude dar a alguém uma segunda oportunidade de fazer o que gosta. Um dia, espero que distante, vai morrer no Cunene vendo os seus elefantes. Prometi que o ia ver em Fevereiro e noutros Fevereiros quando regressar à minha terra. Quero poder ver os elefantes de que ele tanto fala e ouvir as histórias maravilhosas que tem para contar.
Falta-me dizer que este meu amigo é como eu, como muitos de nós de uma cidade linda chamada Benguela.
Falta-me também dizer que este ser humano fantástico, que conduz tudo o que é conduzível, que vai à África do Sul e comboia rebanhos de gado até ao Cunene, teve poliomielite estando paralisado da cintura para baixo!
GED

Sem comentários: