quarta-feira, junho 30, 2010

MANHÃS DE CACIMBO

Bateis de nostalgia
São difíceis de ancorar, principalmente no espaço
Entre o querer e o fugir
Na escolha quotidiana da palavra certa
A sul só sobram cumplicidades
Brilhando nas doces manhãs de cacimbo.

GED

ANTÓNIO GEDEÃO

Pedra Filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

In Movimento Perpétuo, 1956

ANTÓNIO GEDEÃO

Um grande poeta português.

Mãezinha
A terra de meu pai era pequena e os transportes difíceis.
Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões, nem mísseis.
Corria branda a noite e a vida era serena.

Segundo informação, concreta e exacta,
dos boletins oficiais,
viviam lá na terra, a essa data,
3023 mulheres, das quais
45 por cento eram de tenra idade,
chamando tenra idade
à que vai do berço até à puberdade.
28 por cento das restantes
eram senhoras, daquelas senhoras que só havia dantes.
Umas, viúvas, que nunca mais (oh! nunca mais!) tinham sequer sorrido
desde o dia da morte do extremoso marido;
outras, senhoras casadas, mães de filhos...
(De resto, as senhoras casadas,
pelas suas próprias condições,
não têm que ser consideradas nestas considerações.)
Das outras, 10 por cento, eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,
mas que por temperamento,
ou por outras razões mais ou menos secretas,
não se inclinavam para o casamento.
Além destas meninas
havia, salvo erro, 32,
que à meiga luz das horas vespertinas
se punham a bordar por detrás das cortinas
espreitando, de revés, quem passava nas ruas.
Dessas havia 9 que moravam
em prédios baixos como então havia,
um aqui, outro além, mas que todos ficavam
no troço habitual que o meu pai percorria,
tranquilamente no maior sossego,
às horas em que entrava e saía do emprego.
Dessas 9 excelentes raparigas
uma fugiu com o criado da lavoura;
5 morreram novas, de bexigas;
outra, que veio a ser grande senhora,
teve as suas fraquezas mas casou-se
e foi condessa por real mercê;
outra suicidou-se
não se sabe porquê.
A que sobeja
chama-se Rosinha.
Foi essa que o meu pai levou à igreja.
Foi a minha mãezinha.

António Gedeão

Mais ou menos assim

Com a devida licença poética e contando com o bom humor do insuperável Drummond, lá vai:

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J.Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história porque não tinha Internet.

segunda-feira, junho 28, 2010

sexta-feira, junho 25, 2010

PASSOS

Ouço passos na noite
Alguém que chega cadenciando
Andares já pressentidos
Reinventando cores de bem querer
Há luz por todo o lado
Tanta luz ferindo os meus olhos
Explodindo em mil tons de azul
Ouço passos na noite
Irreverentes
Dançando destinos novos
Alisando terrenos agrestes
Convocando energias desconhecidas
Caminham na berma do amanhecer
E eu invento cheiros de jasmim no ar.

GED

Cenas da Vida - Infância

Cena 1: uma menina, de mais ou menos oito anos e magrinha, segura-se em uma barra de ferro e balança o corpo de lá para cá, imaginando ser uma trapezista.

Cena 2: estatelada no chão, a menina soluça.

Cena 3: no quarto dos pais, deitada sobre a cama, a menina está em silêncio, mas seu corpo treme, para desespero da mãe, que chora.

Cena 4: chega, finalmente, o pai, médico, que sem olhar para a menina e dizer uma única palavra, paf, bate no rosto da mãe, não na menina.

Cena 5: a menina apaga.

Cena 6: nauseada, a menina acorda em um quarto de hospital, no lugar da camisola, veste um colete de gesso; a mãe, com um cigarro aceso, continua a conversar com as amigas.

Cena 7: em casa, o gesso coça e esfola; a menina pede a deus que, por favor, a ajude, e pede uma vez mais no dia seguinte e no outro, por duas semanas.

Cena 8: sentada à mesa, a família almoça; o pai, distraído, diz à mãe, hoje, essa menina tem de ir ao hospital às duas horas para trocar o colete; a mãe, prontamente, diz não posso; nesse horário, tem o sono da beleza; ao que ele responde ter o do sagrado trabalho.

Cena 9: outra vez aos soluços, anda, só, pela rua, a menina de mais ou menos oito anos e magrinha; na portaria do hospital, basta falar de quem é filha.

Cena 10: na sala pequena e bege, um homem sangra sobre a cruz pregada na parede e, da veneziana semi-aberta, escapa um facho de luz. A menina, sentada sobre uma mesa, olha ora para um ora para outro, enquanto ouve a voz calma da enfermeira dizer: cuidado, doutor, que ela deve estar em carne viva.

quarta-feira, junho 23, 2010

MÃOS

É de mãos que eu falo
Dedilhando cuidadosamente os sons
De corpos e almas
De mãos serenas, traçando contornos
Para além do vazio e da solidão
Criando ilhas em oceanos violetas
De mãos firmes desventrando amores
Apontando firmemente os caminhos futuros
De mãos entrelaçando outras mãos
Em gestos de ternura incontida.
De mãos incapazes de rasgar cartas
Concavas, segurando a areia dos penhascos
Voando exuberantes sobre as ondas
De mãos feiticeiras tecendo sem fim
Penélopes traçando os seus próprios rumos
De mãos acariciando serenas, o dorso dos rios
Desvendando labirintos e enseadas
Até que finalmente tudo seja mar
É de mãos que eu falo.

GED

terça-feira, junho 22, 2010

Circulação

Dedilha-me com cuidado. Deixa-me ampliar o contorno do mapa que constrói e navega além do meu vazio. Tumultua o fluxo para que o oceano se reconfigure em ilha, e o horizonte escape de dentro feito um amor desventrado.

sexta-feira, junho 18, 2010

SARAMAGO

Saramago partiu.
Nada mais natural, como ele próprio diria.
Para nós, partiu mais do que o nosso Nobel.
Partiu aquele que escreveu o mais belo romance de amor em lingua portuguesa.
Partiu uma voz repetidamente solidária com os mais desfavorecidos.
A Pátria portuguesa está de luto.

GED

quarta-feira, junho 16, 2010

QUE PAÍS?

A Bélgica é um país que me diz muito.
A minha avó era belga e estive lá muitas vezes, por vezes por longos períodos. A minha avó era orgulhosamente flamenga, coisa que eu sempre questionei. Para me fazer entender na zona flamenga, fazia-o melhor em inglês, porque se falasse francês ou não me respondiam, ou respondiam com má cara.
Incompreensivel mas verdadeiro.
Agora, questiona-se a viabilidade da Bélgica como país.
A nossa querida Europa unida é isto: estilhaços de Jugoslávia, de Checoslováquia, provávelmente da Bélgica e numerosos movimentos mini nacionalistas em tudo quanto é sítio.
Vai ser um local bom para viver no futuro!

GED

HERÓIS DO MAR

A entrevista de Ronaldo, foi devastadora do ponto de vista cultural. A arrogância levada ao extremo, por alguém que devia ter um assessor de imagem e que deveria ter o cuidado de não dizer parvoíces.
E, depois foi o que se viu.
Os amantes de futebol como eu, gostam de ver bons jogos, principalmente quando dizem que estão a representar o nosso país. Haja ao menos dignidade.
A atenção que os "media" dão aos nossos "heróis do mar", é do mais bacoco que se possa imaginar e, é triste que tenhamos que assistir a tudo isto que nos entra pela casa dentro.
O maior espectáculo do mundo, com estes actores, torna-se confrangedor.

GED

segunda-feira, junho 07, 2010

Um bicho de sete cabeças

Um bicho de sete cabeças se esconde na minha. Um bicho de olho na tocaia alimenta minhas paranóias enquanto as devora com prazer. Um bicho de sete cabeças gira meus instintos e sacode minhas certezas. Aguça minha fúria pedindo a ela por ternura. O bicho não se enamora da Hidra nem de seu Hércules mutilador. O bicho move o sangue, aniquila invasores. O bicho tem sete cabeças. Não tem sete vidas. Por certo, não há de ter também sete corações.